Pesquisa da Faculdade de Direito da Uerj analisa êxodo de venezuelanos para cidades de Roraima

09/05/202316:46

Diretoria de Comunicação da Uerj

Um trabalho de campo do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (Nepedi) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) analisou os efeitos recentes da migração da Venezuela para cidades vizinhas em Roraima. O relatório desse levantamento, produzido em parceria com a Universidade Federal de Roraima (UFRR), foi encaminhado aos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Segundo o coordenador do Nepedi, Raphael Carvalho de Vasconcelos, a pesquisa é um alerta sobre a emergência humanitária ocasionada pelo fluxo migratório permanente na fronteira. “Os apontamentos têm por finalidade mostrar, às autoridades brasileiras e à sociedade civil de maneira geral, as necessidades que decorrem da movimentação de pessoas naquela região do país – sinalizando tratar-se de uma calamidade paralela e coexistente à crise Yanomami que não pode ser relativizada ou deslocada a plano secundário”, afirma Vasconcelos.

 Os dados sobre a chegada desses estrangeiros ao Brasil foram coletados dos dias 29 de janeiro a 4 de fevereiro, nas cidades de Pacaraima, Cantá e Boa Vista, em Roraima, e em Santa Elena de Uairén, na Venezuela. Foram ouvidas autoridades brasileiras, agentes humanitários, membros da sociedade civil, funcionários de organizações internacionais, migrantes e solicitantes de refúgio. Com base nessas informações, o relatório sugere uma série de ações para uma acolhida mais apropriada, tendo em vista a indicação de políticas públicas alinhadas ao direito internacional com ênfase nos direitos humanos.

Dentre as ações propostas, há necessidades emergenciais referentes à partilha de dados entre autoridades brasileiras e venezuelanas no que se refere, por exemplo, a antecedentes criminais ou mesmo sobre vacinação das pessoas. O estudo apresenta ainda um alerta sobre as condições de acolhimento de grupos indígenas que chegam do país vizinho.

Parceria com pesquisadores locais

A pesquisa foi parte da disciplina “Responsabilidade Internacional do Estado e Jurisdições Internacionais”, oferecida a discentes da Universidade Federal de Roraima por meio de parceria com o Programa de Pós-graduação em Direito da Uerj. “A UFRR tinha a necessidade da formação de seus professores com doutorado. Em 2020, foi celebrado o Programa de Doutorado Interinstitucional (Dinter)”, conta Vasconcelos.

Um dos doutorandos do curso, Esron Messias Vieira Martins, considera o intercâmbio essencial por promover maior proximidade entre os sujeitos e seus objetos de estudo. “Muitos estudiosos dos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, se deslocavam em busca de conhecimento. O Dinter traz uma mudança nesses fluxos, pois os pesquisadores locais protagonizam a construção do saber acadêmico”, afirma.

Princípio da crise

Para Raphael Vasconcelos, que foi Secretário Geral do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, entre 2012 e 2016, a crise migratória se instaurou após a morte do presidente Hugo Chávez, “quando a situação social da Venezuela começou a se deteriorar”. O estado venezuelano teve, em 2014, um sério problema de receita devido à desvalorização repentina do petróleo. “Nicolás Maduro não conseguiu manter as políticas do antecessor porque o barril passou de 140 para 40 dólares”, lembra o professor.

A isso se somou a repressão do governo venezuelano ao “Caracazo” daquele mesmo ano. “Foi um protesto da oposição nas ruas, muito parecido com o ‘8 de janeiro’ no Brasil”, diz Vasconcelos. A reação de Maduro às manifestações acabou justificando sanções e embargos internacionais que a Venezuela passaria a sofrer a partir de então.

O fluxo de saída dos migrantes teve seu ápice entre 2017 e 2018. Segundo Esron Messias, que vive em Boa Vista há mais de 10 anos, “cerca de mil pessoas passavam diariamente na fronteira com Roraima, considerando apenas aquelas que eram devidamente registradas”. A situação se tornou um problema porque Roraima não estava preparada para absorver tantos migrantes. “Boa Vista, por exemplo, possuía menos de 300 mil habitantes até meados de 2016, início de 2017. Aquela cidade pequena, planejada, de repente se viu com barracas na rua, mendicância, violência, praças tomadas”. Dados preliminares do Censo do IBGE de 2022 estimam que a capital tenha hoje uma população de 436 mil habitantes.

Operação Acolhida

Diante do impasse, o governo brasileiro criou, em 2018, a Operação Acolhida, no intuito de oferecer atendimento humanitário a refugiados e migrantes da Venezuela seguindo três pilares: ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização. A pesquisa de campo acompanhou, de ponta a ponta, a recepção, o registro e o encaminhamento de migrantes pela operação.

No momento em que cruzam a divisa entre os países, os migrantes não apenas recebem alimentação e outros cuidados emergenciais, como também passam por processos de triagem e levantamento de dados, e ganham documentos, como CPF e identidade estrangeira. O professor destaca o aspecto humanitário desse acolhimento coordenado pelas Forças Armadas e lista alguns desafios na organização: “Imagina receber por dia 700, 800 pessoas, oferecer vacinas, alimentação, 8 mil marmitas em Pacaraima, 25 mil em Boa Vista. Organizar isso é algo de que a gente deve ter orgulho”.

É uma operação complexa que combina esforços de distintas entidades como Ministério da Cidadania, Polícia Federal, Defensoria Pública da União, Organização Internacional para as Migrações (OIM), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), dentre outros. O acesso facilitado a representantes dessas instituições foi outra vantagem do intercâmbio entre as universidades, pelo fato de alguns dos doutorandos ocuparem cargos na Defensoria Pública do Estado e no Tribunal de Justiça de Roraima.

Trabalho de campo intenso

Ao longo da semana em campo, a equipe buscou informações também junto a outras entidades, como ONGs. Os pesquisadores visitaram a sede da prefeitura de Santa Elena de Uairén, na Venezuela, e quando retornaram à Boa Vista, ainda conheceram comunidades e abrigos onde se concentram indígenas das etnias Waraó e Kariña, vindos da Venezuela. Sem contar o registro de relatos informais de civis, migrantes e tantas outras pessoas que têm suas vidas afetadas em meio ao fluxo migratório.

O trabalho possibilitou um levantamento bem diverso de dados e a produção do relatório com as sugestões para mitigar a crise. Raphael Vasconcelos afirma que “o maior desafio é não enviesar a pesquisa de campo. Quando conversamos com pessoas e representantes de entidades muito distintas, escutamos diversas versões de uma mesma história”. Com isso, ele afirma, a amostragem conseguiu refletir bem a realidade.

No relatório, por exemplo, há uma constatação delicada relativa a indígenas que vêm sendo interiorizados ou acolhidos de maneira uniforme. Vasconcelos, que percebeu o  fato casualmente durante o trabalho, destaca que “os indígenas não devem receber o mesmo tratamento das outras pessoas. Eles precisariam ser inquiridos se sabem o que significa se separar de sua comunidade”.

Esron Martins acrescenta que “a ideia de tratar os migrantes de forma igualitária acaba por promover, eventualmente, algumas violações do Direito Internacional”. O relatório recomenda, assim, uma interrupção cautelar da prática diante da possibilidade de suspeita de etnocídio.

Os pesquisadores também ressaltam que as autoridades precisam dedicar um cuidado especial relativo às populações mais vulneráveis. Além dos indígenas, estariam nesse grupo os menores de idade – que frequentemente adentram o país sem qualquer responsável legal –, as mulheres grávidas e até mesmo animais domésticos abandonados nas travessias.

Para Raphael Vasconcelos, o governo federal atual parece ainda não ter se dado conta da gravidade da situação migratória em Roraima. Por isso, ele cobra melhor planejamento e coleta de dados mais adequada para que, afinal, políticas públicas possam ser aprimoradas: “É preciso saber quantas crianças, quantas mulheres, quantos homens, qual é a classe social dessas pessoas. Não é possível fazer política pública sem dados”.

A pesquisa sobre a crise migratória em Roraima permitiu a formulação de 14 recomendações encaminhadas a órgãos governamentais na expectativa de que “a universidade possa fazer extensão de verdade, ter impacto social”, defende Vasconcelos.

O dossiê foi publicado pela Revista da Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul.