Vítimas ou empoderadas? Pesquisa da Uerj analisa transformações sociais no enfrentamento ao câncer de mama

31/10/202321:02

Diretoria de Comunicação da Uerj

 

Há 20 anos, a antropóloga Waleska Aureliano, professora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), analisa como as mulheres com câncer de mama lidam com o processo de adoecimento e são representadas em nossa sociedade. Os estudos revelam uma mudança no rótulo de “vítima do câncer” para uma perspectiva de “empoderamento”, na qual há consciência sobre o diagnóstico, esperança no tratamento e segurança para expor o corpo ou falar sobre o tema.

“No entanto, é preciso observar que esse é um movimento de algumas mulheres dentro de um universo muito heterogêneo. Não se pode pensar essas transformações como algo que atravessa todas, igualmente. Há uma variedade muito grande nessa experiência a depender de fatores sociais e culturais, de acesso à saúde, história pregressa, dos relacionamentos e do modo como essa mulher se insere no mundo do trabalho”, ressalta a antropóloga.

Na entrevista a seguir, a professora dá mais detalhes. Confira!

  • O que mudou, ao longo desses anos de estudo, sobre os relatos dessas mulheres que passaram pela experiência de ter o câncer de mama?

A transformação na visibilidade. Em 2004, quando comecei a pesquisar o tema, já existia uma realidade de conversa na arena pública muito mais aberta do que há 40 anos. Com o advento da internet, houve uma aceleração desse processo de visibilizar essas experiências, e não mais silenciar. Não só com o objetivo de conscientização ou alerta sobre a doença, algo que é muito comum partindo do discurso médico – principalmente no Outubro Rosa –, mas também com narrativas pessoais que começam a surgir em torno de uma vivência após o câncer, de mulheres que vivem com a doença em fase metastática e que, usando medicamentos e tratamentos novos, conseguem ter maior expectativa de vida.

Outra questão que observamos foi uma alteração no modo como essa mulher expõe o corpo alterado após a doença. Por exemplo, existe nos Estados Unidos um movimento que defende o direito de não reconstruir o seio, chamado de Flat Closure – o termo refere-se à possibilidade de se ter um peito plano, sem a obrigatoriedade da reconstrução mamária. Há vários perfis no Instagram que trazem essa proposta de sair do discurso normativo que uma mulher “de verdade” é aquela que corresponde a esse corpo com dois seios e alguns símbolos atribuídos a eles. E defendem que existe esse corpo transformado pela doença, reconhecendo que há uma perda de fato, mas que não cabe a elas se esconderem da cena pública devido à alteração em seus corpos.

  •  O discurso médico sobre o câncer de mama também está diferente?

Sim, mudou bastante. Saiu daquela perspectiva fatalista, na qual muitos profissionais de saúde sequer falavam o nome da doença. Hoje vemos um diálogo muito mais franco com os pacientes sobre o câncer. Apesar de não existir uma medicação que cure no curto prazo, e a maioria dos tratamentos ser longa e desgastante, há bons resultados em boa parte dos casos, o que também influenciou essa nova postura.

  •  Isso se reflete nos posicionamento das mulheres?
Professora Waleska Aureliano (ICS/Uerj)

Sim, a narrativa das mulheres se transforma porque elas recebem um prognóstico que traz esperança de cura e qualidade de vida durante muitas décadas. Além disso, mudou também o que se pode oferecer em termos estéticos. Desde 1999, existe a Lei Nº 9.797, que garante à mulher a reconstrução mamária no momento da mastectomia, embora sua aplicabilidade seja muito variada. Antigamente muitas mulheres não queriam fazer a reconstrução mamária porque um seio geralmente ficava muito diferente do outro, em termos de tamanho. Agora a lei também já prevê que seja feita a simetrização dos seios, se não no momento da cirurgia, posteriormente. Mas, em termos práticos, não funciona da mesma forma em todos os serviços que atendem às mulheres que passam por câncer de mama. Então algumas ainda vão ter dificuldades em realizar esse procedimento – se há problemas para realização de exames básicos, mamografia ou ressonância magnética em muitos lugares do Brasil, que dirá fazer uma cirurgia de retirada da mama já com a reconstrução e simetrização. Mudou muita coisa, mas precisamos de uma implementação mais efetiva dessas mudanças.

  • Suas pesquisas identificaram padrões de representação que tanto reforçam expectativas sociais de feminilidade quanto outros, que as questionam. O que essa pluralidade diz sobre a experiência de ser mulher afetada pelo câncer de mama, no mundo atual?

Há uma riqueza de olhares. Por exemplo, temos o trabalho do fotógrafo David Jay que fez uma mostra com mulheres que tiveram câncer entre 18 e 35 anos, após uma amiga dele ser diagnosticada aos 29 anos. A exposição chegou ao Brasil em 2014, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, com a participação de algumas brasileiras no projeto. Nessas fotos, apareciam jovens sem as mamas.

Quando tentei comprar o catálogo da mostra na internet, algo que me chamou a atenção foram os elogios na seção dos comentários. Muitas mulheres diziam que a obra dele havia ajudado na recuperação da sua autoestima e a se entenderem como um corpo vivo e atuante, apesar das cicatrizes ou da ausência de um seio, permitindo que se vissem de forma positiva, para além das transformações corporais causadas pela doença.

  •  O que esse tipo de trabalho pode ensinar às instituições responsáveis por campanhas de esclarecimento e conscientização sobre a doença?

Ao mesmo tempo que conscientiza sobre as consequências reais da doença, como a perda de uma parte importante do corpo da mulher e o desafio dos tratamentos, trazer para o debate público essas diferentes experiências permite que muitas se identifiquem com uma campanha. Quando elas não se reconhecem, não é possível criar nessas pessoas um impulso para o autocuidado, procurar um médico ao identificar algo suspeito em seus corpos, fazer o autoexame ou exames regulares. Ter no espaço público o relato de mulheres diversas traz visibilidade para elementos específicos relacionados ao adoecimento por câncer de mama. Por exemplo, as mulheres negras são as que mais têm se mobilizado, nas redes sociais, por maior representatividade nas campanhas do Outubro Rosa, para que possam se reconhecer e buscar os serviços de saúde.

No entanto, é preciso lembrar que não basta apenas demandar das mulheres a responsabilização pelo autocuidado, é preciso oferecer políticas públicas, acesso aos serviços de saúde, para que possam fazer o acompanhamento médico preventivo adequado, porque o que temos hoje é uma realidade muito dura para uma parcela importante que não consegue um exame como a mamografia.

Algumas discussões ainda continuam ausentes, como o câncer de mama entre homens, por exemplo. Apesar de ser um grupo com incidência menor, geralmente em função de uma herança genética, eles acabam recebendo um prognóstico pior que as mulheres por não procurarem os serviços de saúde, uma vez que o câncer de mama é percebido como uma doença exclusiva das mulheres. Mesmo tendo casos na família, muitas vezes não procuram o serviço de saúde e não se consideram em risco como suas irmãs, primas, tias, por não se verem representados pelas campanhas em relação ao câncer de mama.

  •  Segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia, mais de 70% dos homens abandonam suas mulheres com câncer de mama. Na sua avaliação, por que esse fenômeno acontece?

Não tenho um levantamento específico sobre essa questão. Mas são frequentes os casos das mulheres que contam que seus maridos pedem o divórcio, ou elas pedem, porque a relação se torna insustentável depois do câncer. Esse fenômeno frequentemente acontece pela incapacidade masculina, devido ao machismo, de lidar com questões relativas ao cuidado, à saúde e à doença. E também pela falta de afeto pela pessoa que está passando pelo problema – em relacionamentos já fragilizados, o câncer pode se tornar a desculpa ideal ou argumento perfeito para o parceiro romper com alguém por quem ele já não nutria um sentimento verdadeiro.

A mulher é vista como aquela que cuida, que tem a obrigação de cuidar não só de si mesma, como do marido, da casa, dos filhos. Essa visão é muito naturalizada em boa parte da sociedade, apesar dos avanços que incluíram a mulher no mercado de trabalho, mas não o homem nas práticas de cuidado – as mulheres incorporaram o trabalho produtivo, mas os homens não entraram, na mesma proporção, naquilo que chamamos de trabalho reprodutivo. Então os homens também precisam começar a ser socializados, de modo a entender que eles têm, sim, obrigações em relação ao cuidado com aqueles que fazem parte do seu núcleo mais próximo – no caso, a família.

  •  Qual a importância dessas narrativas produzidas por mulheres que sofrem com o câncer de mama, do ponto de vista terapêutico e da conscientização social?

Na medida em que elas falam sobre o que estão vivendo, há uma organização dessa experiência para si e para o outro. É importante possibilitar essa reflexividade. Na internet, observamos mulheres que gravam o momento de raspagem da cabeça após o início do tratamento com a quimioterapia, como um ritual de passagem. A queda do cabelo é algo muito aflitivo, que vai comunicar socialmente o adoecimento e também promover uma mudança radical na imagem daquela pessoa – diferentemente da retirada da mama, que pode ser reconstruída ou substituída por uma prótese móvel, para ocultar sua falta. Esses registros são encarados como uma atitude de força e enfrentamento da mulher, uma forma de dizer “sim, eu tenho câncer de mama, estou fazendo o tratamento, e não há motivo para esconder essa realidade”.

Compartilhar essas experiências nos faz pensar o câncer de forma mais plural, diversa e inclusiva, chamando atenção para os aspectos sociais envolvidos no processo de adoecimento. E também, de certa forma, conseguir ter um alcance maior no sentido de que a prevenção seja de fato coletiva, e não encarada como uma responsabilidade individual ou iniciativa puramente pessoal. Para isso, é necessário dar acesso a todas as mulheres ao diagnóstico precoce e aos tratamentos, permitindo que elas falem sobre si sem constrangimento, sem se sentirem menos mulheres, mas sim afirmando esse ser mulher a partir de várias outras possibilidades.