Saúde Mental: serviços da Uerj trilham os caminhos para consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil

28/04/202517:27

Diretoria de Comunicação da Uerj
O professor e psiquiatra Paulo Pavão na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria da Uerj

De um modelo centrado no hospital psiquiátrico e na medicalização da loucura a um cuidado mais próximo da comunidade, as recentes transformações no campo da saúde mental no Brasil se entrelaçam com iniciativas pioneiras da Uerj nessa área. Mesmo antes da aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216, de 2001) e das portarias federais de 2002 e 2011, que consolidaram a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), a Universidade tem sido referência na implementação de práticas que fortalecem um novo paradigma na atenção em saúde mental.

Entre os serviços oferecidos pela Uerj, estão a Unidade Docente Assistencial (UDA) de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), o Centro de Atenção Psicossocial (Caps/Uerj) e o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA). Cada um cumpre um papel essencial no atendimento à população, na formação de profissionais e na produção de conhecimento, alinhados aos princípios da reforma psiquiátrica por um cuidado em saúde mental mais inclusivo.

Reconhecendo a importância do bem-estar emocional e psicológico dentro da Universidade, em novembro de 2024, o Conselho Universitário (Consun) aprovou, por unanimidade, a criação do Comitê da Política de Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Uerj. A comissão é responsável pela elaboração, implementação, acompanhamento e avaliação dessa política, além de promover debates, pesquisas e diagnósticos sobre a situação da saúde mental na instituição.

Enfermaria Psiquiátrica do Hupe completa 50 anos

Em um canto discreto do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), uma portinha dá acesso ao serviço que estudantes e profissionais se acostumaram a chamar de “Vila Psiquiátrica”. O local, cujo nome oficial é Unidade Docente Assistencial (UDA) de Psiquiatria, abriga três núcleos: o Centro de Convivência, o Ambulatório e a Enfermaria Professor Dr. Paulo Pavão — esta última nomeada em homenagem ao psiquiatra que dirigiu a unidade por 25 anos, de 1990 a 2015, e que, mesmo aposentado, segue atuando como voluntário.

O serviço também era chamado de “Vila da Fraternidade”, segundo o professor e psiquiatra Paulo Pavão. “Esse apelido foi dado por um paciente em uma reunião de equipe. Todos os meses, fazíamos uma assembleia, sempre foi um serviço extremamente democrático”, afirma ele.

Com uma equipe multidisciplinar, a UDA oferece atendimento integrado, incluindo consultas e internações de curto período, e atividades terapêuticas e de reinserção social. A estrutura, que parece modesta à primeira vista, é um dos pilares da formação em psiquiatria na Universidade e do atendimento à população do Rio de Janeiro.

Pavão considera o mês de abril de 1975 a data de início da enfermaria de psiquiatria do Hupe como uma “unidade psiquiátrica de fato”. “Essa data é de um certo modo arbitrária, porque houve a transição de atividade voltada para uma disciplina da Universidade para um serviço”, pontua. “Quando a Faculdade de Medicina veio de São Cristóvão para o terreno do atual Hospital Universitário Pedro Ernesto, a psiquiatria foi instalada em casas de operários da fábrica de tecidos do Andaraí. Não se pode falar nesse período de um serviço, o foco era menos o tratamento e mais o ensino. Os pacientes serviam de modelos para as aulas. A partir dessa data, considero que já funcionava efetivamente uma enfermaria”, relembra.

Ele aponta que, durante a década de 1980, as supervisões, a atividade multidisciplinar e a abertura do espaço de convivência da UDA de psiquiatria ainda estavam sendo implementadas. “Todos esses serviços foram inspirados no trabalho de Nise da Silveira no Engenho de Dentro. Depois, já na década de 1990, fomos estruturando e dando organicidade ao serviço. Hoje, também temos modelagem, teatro, musicoterapia, entre outras atividades. Há uma unidade entre o ensino, a pesquisa, a extensão e a assistência”, revela.

O professor acrescenta que, do ponto de vista clínico, o serviço atualmente é muito complexo. “Criamos um espaço de atendimento, ou seja, a terapia ocupacional como uma forma muito efetiva de acompanhamento dos psicóticos. Os pacientes internados em crise depois vão para o ambulatório. Temos também um setor de família e um setor de alcoolismo e drogas”, completa Pavão.

A vila e a reforma psiquiátrica

Paulo Pavão explica que, embora tenha sido criada antes das leis e portarias que impulsionaram a reforma psiquiátrica no Brasil, desde o seu início, a Vila Psiquiátrica não adotou as características de um asilo. “Não temos muro alto nem grade. Antes de vir para cá, trabalhei com Nise da Silveira, uma das precursoras da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial [movimento social contra o modelo asilar em psiquiatria, com atuação desde a década de 1980 até hoje] no Brasil. Na enfermaria, passamos a trabalhar mais com internação voluntária do que involuntária e evitamos altas doses de medicação. Franco Basaglia, o famoso psiquiatra italiano e principal teórico da reforma psiquiátrica, visitou o serviço na década de 1980 e gostou”, diz Pavão.

Um dos avanços que a luta antimanicomial propagou, segundo ele, foram as internações curtas, sempre que possível, com o acompanhamento ambulatorial e o encaminhamento para os Caps ou para os centros de convivência, como o que existe na UDA de Psiquiatria da Uerj. “Com isso, temos hoje uma taxa de evasão de zero. Eu brinco que o porteiro da nossa unidade não é para evitar a saída dos pacientes, mas para prevenir que entrem, porque nossas casas têm uma hotelaria regular, com alimentação, vigilância, enfermagem 24 horas e um médico de plantão”, acrescenta.

Caps Uerj: atenção psicossocial no território

O Centro de Atenção Psicossocial da Universidade (Caps/Uerj) foi instalado, em 2012, na Policlínica Universitária Piquet Carneiro (PPC) da Uerj como um desdobramento do Hospital-dia Ricardo Montalban, que havia na UDA de psiquiatria, a partir dos avanços da legislação sobre e reforma psiquiátrica no Brasil.

Unidades estratégicas do sistema de saúde, os Caps atuam como porta de entrada para o atendimento em saúde mental e como reguladores da atenção territorial, que prioriza o cuidado próximo à realidade dos pacientes. Com foco na reabilitação psicossocial – um novo modelo de cuidado que insere outras práticas clínicas para além da psiquiatria, como a psicologia, a terapia ocupacional e o serviço social –, esses centros garantem o acolhimento humanizado e fortalecem a atenção comunitária, buscando evitar internações desnecessárias.

De acordo com Anália Barbosa, assistente social e atual coordenadora-geral do serviço, o Caps Uerj abriga quatro programas de residência, incluindo a Residência Integrada e Multiprofissional em Saúde Mental, interdisciplinar e gerida em conjunto pelo Instituto de Psicologia e pela Faculdade de Serviço Social, ambas da Uerj. “Isso representa para a instituição a capacidade de formar profissionais no campo da atenção psicossocial. Nenhuma outra universidade oferta isso. Somos o único Centro de Atenção Psicossocial do Brasil habilitado na modalidade ‘Caps Universitário’. A formação na Uerj oferece a vivência em um Caps como campo de prática”, afirma.

O Caps da Uerj oferece suporte essencial para pessoas com transtornos mentais graves, visando à sua integração social e autonomia. O atendimento, além das atividades terapêuticas no próprio Caps, também atua diretamente nos espaços de socialização onde os usuários do serviço enfrentam desafios. “Certos usuários têm dificuldade em acessar a Clínica de Saúde da Família, outros apresentam dificuldades no seu local de moradia, alguns têm dificuldade nas relações familiares. A proposta da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica é justamente dar suporte para a articulação do sujeito em seu território e em sua vida. Desse modo, é importante a equipe atuar no espaço de conflito de cada um”, destaca Anália.

Além disso, ela acrescenta que o Caps Uerj gerencia três residências terapêuticas localizadas nos bairros Maracanã, Grajaú e Tijuca, abrigando um total de 24 moradores. “Esses espaços contam com cuidadores e uma coordenadora responsável e recebem financiamento municipal para garantir assistência contínua e adequada. O foco da iniciativa é promover a inclusão e fortalecer a presença dos usuários na sociedade, alinhando-se aos princípios da reforma psiquiátrica”, aponta.

SPA: 55 anos promovendo estágios e atendimento à comunidade

Rosana Rapizo (terceira à esq.) com a equipe de profissionais do SPA

Com atendimentos gratuitos à população, o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Uerj contribui para a formação acadêmica e o acesso da comunidade a atendimentos em saúde mental. O serviço foi fundado há 55 anos, em 5 de maio de 1970, de acordo com a coordenadora Rosana Lazaro Rapizo, com a missão de proporcionar aos estudantes o acesso a práticas clínicas para a sua formação acadêmica. “E, além disso, busca responder às demandas psicológicas da comunidade, oferecendo serviços supervisionados por docentes e profissionais qualificados”, pontua.

Além dos atendimentos realizados em suas instalações, Rosana conta que o SPA estabelece parcerias com outras instituições, permitindo que os estagiários atuem em diversos contextos, como unidades hospitalares, serviços de saúde mental, espaços de socioeducação, sistema prisional e recursos humanos. “Essa atuação externa amplia as experiências de formação dos futuros psicólogos e contribui para a comunidade em diferentes âmbitos. Além de alcançar a comunidade externa, o SPA atende também à comunidade interna da Uerj, com uma procura grande de alunos e alunas de diversos cursos”, ressalta Rosana. 

A coordenadora explica que qualquer pessoa pode ser recebida no SPA, que conta com atendimento individual em várias abordagens psicológicas diferentes, em grupos com temas específicos, de crianças, famílias e casais, além de atendimentos específicos a pessoas e famílias, entre outros. “Dentro da Universidade, contamos com estágios para alunos da Psicologia no Hupe, na UDA de Psiquiatria e na PPC. Fora da Uerj, temos parcerias com a organização comunitária Redes da Maré e com demais serviços de saúde mental públicos, impactando profundamente a formação dos alunos”, conclui.