Pesquisadores da Uerj estudam questões de gênero e sexualidade na educação e suas interseccionalidades

28/06/202414:56

Diretoria de Comunicação da Uerj

Em 28 de junho de 1969, os frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, se rebelaram contra a recorrente opressão policial que sofriam no local, um dos poucos ambientes de liberdade para quem ousava desafiar a heteronormatividade naquela época. Esse levante impulsionou um movimento que conquistou espaços de visibilidade nas ruas e no debate público, provocando transformações sociais em muitos países. Considerada um marco na luta por direitos, a data da Revolta de Stonewall é hoje celebrada como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+.

Nas últimas décadas, muitos trabalhos acadêmicos buscaram entender e documentar a influência desse ativismo na história e na cultura contemporâneas. Na Uerj, vários pesquisadores têm se dedicado aos estudos de gênero e sexualidade na educação e em outras áreas, como psicologia, política e direito. Partindo de experiências individuais e vivências de grupos minorizados, eles refletem sobre as questões relacionadas ao reconhecimento das identidades e suas expressões na sociedade, além dos desafios enfrentados no cotidiano para compreensão e valorização da diversidade. Conheça a seguir algumas dessas pessoas. Elas apresentam o tema de suas pesquisas e contam suas motivações, achados e expectativas.

Will Paranhos, pessoa não-binária e com deficiência, pedagoga, militante dos direitos humanos e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação (Proped) da Uerj.

“Atualmente, em minha pesquisa de doutorado, tenho procurado pensar um pouco em torno do radicalismo identitário. Preciso frisar que algumes autories utilizam de ‘identitarismo radical’ ou ‘identitarismo neoliberal’. Porém, faço questão de trazer o ‘radicalismo’ primeiro para enfatizar que a questão se relaciona com a postura/prática/conduta radical de parte de alguns grupos identitários. Não da política identitária como um todo, que devemos considerar importante para que se promova o reconhecimento social necessário, tendo em vista a ampliação de acesso, garantia e proteção de direitos. Este é um movimento que não é exclusivo dos setores mais progressistas e tem estado cada vez mais presente nos discursos e práticas de grupos conservadores.

Minha motivação surge por duas questões principais. A primeira tem a ver com minha trajetória dentro da militância social, em especial em grupos LGBTIAP+, desde meus 16 anos, onde percebia uma forte fixação identitária. A segunda emerge no momento em que passo a me compreender e, consequentemente, me autodeterminar enquanto uma pessoa não-binária. É quando começo a ouvir de minhes pares que eu não posso ser uma pessoa não-binária pelo fato de ter barba, por performar certa masculinidade ou mesmo por não ‘entregar’ uma ‘total’ androginia. Em suma, tenho pensado o quanto os discursos e práticas buscam estancar os fluxos da diferença por meio das fixações identitárias. Muites autories têm refletido há anos sobre este processo, sobretudo dentro dos estudos da raça, gêneros e currículo, como, por exemplo, Achille Mbembe, Frantz Fanon, Castiel Vitorino, Judith Butler, Marlene Wayar, Asad Haider, Vladimir Safatle, Elizabeth Macedo e Alice Lopes.

Há tempos falo que existem algumas palavras que não gosto: aceitar, tolerar e respeitar. ‘Aceitar’ me dá a sensação de que há alguém em uma posição superior que me aceita ou que eu, ocupando-a, aceito alguém. Reforça-se o pensamento hierarquizante. ‘Tolerar’: o que nós toleramos? Geralmente aquilo de que não gostamos, que não suportamos, e é forçoso tolerarmos este algo. ‘Respeito’ me lembra muito a época em que tínhamos o dever de ‘respeitar’ as pessoas mais velhas simplesmente por se tratarem de pessoas mais velhas, trazendo novamente essa obrigatoriedade. Gosto muito de ‘compreensão’. A palavra, em sua etimologia, significa agarrar com as mãos, conter em si, em sua natureza; estar ou ficar incluíde; abranger(-se). Nota como ‘compreensão’ se aproxima muito mais de uma ideia de políticas de coalização? São nelas que acredito, mesmo sabendo que são sempre provisórias.

De nada adianta eu militar na busca de uma sociedade que prime pela diferença se eu ainda tenho pensamentos e, não raro, produzo ações que reforçam a cisheteronormatividade. Isso não quer dizer que seja possível um dia nos tornarmos alguém completamente sem preconceitos. Mas é justamente aí que reside a importância da desconstrução, que é ininterrupta. Com toda a certeza, aos poucos, se nos propusermos a este exercício, conseguiremos mudar algumas de nossas concepções e práticas.

Atualmente, integro uma vertente que defende não uma ‘educação sexual’, mas uma ‘educação para a sexualidade’, justamente na tentativa de trabalhar com essa noção de movimento e provisoriedade, não de algo fixo. Com ‘sexualidade’ não estamos, em momento algum, nos referindo à orientação afetivo-sexual, mas à sexualidade humana como um todo. Práticas de autocuidado, por exemplo, estão relacionadas à sexualidade humana. Então, a primeira coisa que devemos fazer é mudar – e nos tornarmos agentes de mudança – as concepções errôneas propagadas a respeito da educação para a sexualidade.

De maneira geral, pensando no cotidiano escolar, tais práticas podem ser tidas como desconstrutoras. Um exemplo que gosto muito é a possibilidade de usarmos histórias para trabalhar na educação infantil. Pensemos no ‘Patinho Feio’. Após a leitura, podemos problematizar, junto às crianças, questões como: ‘Por que ele é feio?’; ‘O que é feio?’; ‘E o que é bonito?’; ‘Quem ou o que define o que é feio e o que é bonito?’; e assim por diante. De maneira implícita, propomos que as próprias crianças pensem naquilo que é fixado na sociedade e que nós, pessoas adultas, só seguimos reproduzindo.

Em um mundo em que tudo consiste em um grande emaranhado, onde nos constituímos nas relações, não há como uma ação minha não refletir na vida de outre. E a educação para a sexualidade é um meio para que possamos trabalhar, inclusive, essa noção relacional e abrir um terreno fértil para que criemos, no futuro, políticas de coalizão”.

Camila Santos Pereira, professora, pesquisadora e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação (Proped) da Uerj

“Em 2020, ingressei na Uerj como mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação (Proped), na linha de Cotidianos, Redes Educativas e Processos Culturais. Desde a minha chegada, sempre fui integrante do grupo de pesquisa Geni – Estudos de Gênero e Sexualidade, coordenado pelo meu orientador, o professor Fernando Pocahy. Por isso, o olhar interseccional entre esses marcadores sociais e as relações étnico-raciais na educação sempre me acompanharam, especialmente ao pesquisar sobre os cotidianos educacionais.

Como mestranda, analisei como as relações de gênero e raça se interseccionam na história de vida de professoras universitárias negras e também produzi dados quantitativos sobre as universidades públicas do estado do Rio de Janeiro e a diversidade de gênero e étnico-racial do corpo docente. Meus resultados corroboram pesquisas anteriores que destacam que, mesmo em um país com a maioria da população negra (cerca de 56%, segundo o IBGE), docentes negros e negras ocupam geralmente em torno de 15% das posições. A minha dissertação ‘Vozes que importam: mulheres negras na docência universitária’ (2022) já está disponível na Biblioteca Digital da Uerj.

Em 2023, ingressei novamente no programa como doutoranda e agora pretendo continuar trabalhando com as questões de gênero e suas intersecções com as relações raciais, mas levando esse debate para a Educação Especial. Principalmente porque, como professora e pesquisadora, percebo que essas questões são raramente entrelaçadas, ou seja, são comumente vistas de forma separada.

Por fim, as experiências como mulher negra de sexualidade dissidente neste campo de pesquisa são onde encontro minhas motivações e implicações para seguir com esses temas e produzir essas perguntas. Em outras palavras, as minhas vivências me impulsionam a continuar questionando as desigualdades sociais no nosso país a partir de uma visão interseccional, principalmente para que as novas gerações não encontrem mais os mesmos obstáculos”.

Merlin Magalhães, psicanalista, psicólogo, palestrante, especialista em relações de gênero e mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação (Proped) da Uerj.

“Considero a linguagem como ferramenta de luta, por isso desejo transformar o meu percurso, a minha experiência e vivência como autocobaia numa pesquisa transcentrada. Paul Preciado é minha referência para construir um estudo seguindo essa ideia, sendo eu o próprio laboratório e o sujeito que teoriza a seu respeito, que reflete na experiência de transição de gênero enquanto transmasculino num corpo não-binário, se autorrevelando antes e depois do uso da testosterona, pensando o devir trans. Por meio disso, pretendo nomear e conceituar a cisgeneridade, tornando a pesquisa transcentrada, focando principalmente em autores/as trans e travestis, manifestando o cissexismo e transfobia através dos privilégios que pessoas cisgêneras atentam.

Logo, a formação do psicanalista se cruza, visto que sou um analista trans, e que manifesta um paradoxo na própria teoria lacaniana e práxis de psicanalistas contemporâneos em relação à Teoria da Sexuação, na qual há várias problemáticas e ao mesmo tempo alguns pontos que podem ser bem aproveitados. Por exemplo, compreender que ‘homem e mulher não são nada mais do que significantes’, como disse Lacan (1973), fazendo com que esses significantes entrem na história de cada pessoa e o gênero não seja uma norma para assumir um papel e sim romper com isso.

Portanto, estão em formação o trans, o cis e o analista. Problematizo como (des)construir uma (trans)formação de p(cis)canalistas? Considera-se que a cisgeneridade seja uma norma assim como a branquitude, porém a cisgeneridade é menos reconhecida hoje. E, tendo como base um guia para o reconhecimento da branquitude (Coelho, Alves e Cabeça, 2022), penso em uma in(ter)venção de criar um guia de reconhecimento da cisgeneridade como maneira de transformar a formação de psicanalistas”.

Ana Ladeira, professora, pesquisadora, poeta e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação (Proped) da Uerj

“Durante o mestrado no Proped, minha pesquisa, com protagonismo de mulheres lésbicas docentes dos anos iniciais e da educação infantil, me desafiou a pensar no modelo obrigatório da professorinha e na necessidade de que este seja investigado em mais pesquisas na área da Educação, sobretudo aliada à sexualidade, raça e geração, numa perspectiva interseccional.

A motivação para desenvolver a dissertação intitulada ‘Memórias dissidentes de professoras de crianças: episódios de lesbofobia cotidiana’ partiu da identificação com o tema e da percepção da ausência de investigações centradas em professoras lésbicas que trabalham com crianças. É como se essas professoras não existissem ou fosse menos relevante uma pesquisa específica e aprofundada levando em consideração suas vivências cotidianas, as violências sofridas, as maneiras particulares de resistir. Priorizei conversas com professoras lésbicas/sapatãs com mais de cinquenta anos, que seguiam exercendo a docência em turmas de educação infantil e dos anos iniciais.

Fui muito inspirada pela obra de Grada Kilomba (2019), ‘Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano’. A partir dela, optei por narrativas autobiográficas e, após ouvir e dialogar com as docentes, alinhavei um conjunto de episódios de lesbofobia cotidiana, em instituições de ensino, e as estratégias de resistência diante dos percalços. O alicerce desta pesquisa firma-se na Teoria Queer, em estudos feministas, pós-estruturalistas, estudos da memória e das lesbianidades, especialmente os desenvolvidos por intelectuais negras e decoloniais. Uma pesquisa árdua e, ao mesmo tempo, prazerosa. Agradeço ao professor Fernando Pocahy, que me orientou com tanta dedicação”.