Diretoria de Comunicação da Uerj
“Rita é uma mulher negra de 32 anos e mãe de quatro filhos de 8, 10, 15 e 20 anos. Auxiliar de cozinha numa pizzaria e diarista, moradora de Madureira, bairro da Zona Norte do Rio, responde sozinha pelo sustento da casa, pois havia alguns anos não vivia mais com o antigo companheiro. Disse que recebia na pizzaria cerca de R$ 900 mensais, mais as diárias da faxina a R$ 150, cada. Esse trabalho era todo realizado na informalidade, já que Rita, sem registro, não possuía carteira de trabalho ou outro documento. (…) Nem Rita nem os filhos têm documentos, e por isso ela procurou o ônibus da Justiça Itinerante, encaminhada pelo padre de sua comunidade. Agora Rita trouxe a irmã, a também diarista Claudete, de 42 anos. As duas irmãs me relataram a mesma história: a mãe dela teve 11 filhos, mas nenhum chegou a ser registrado”.
Depoimentos de pessoas semelhantes aos de Rita e Claudete fazem parte de “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento” (FGV Editora), livro de Fernanda da Escóssia, jornalista cearense e professora da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da Uerj. A obra é o resultado de sua tese de Doutorado, defendida em 2019, com assunto ao qual a pesquisadora vem se dedicando há mais de 20 anos.
“Comecei a estudar o tema enquanto repórter, quando acompanhei os dados do IBGE sobre registro civil. Na primeira matéria que escrevi, publicada em janeiro de 2003, 20% das crianças não foram registradas no mesmo ano em que nasceram ou nos primeiros três meses do ano seguinte. Constatei que não eram somente as crianças indocumentadas. As mães não registravam as crianças porque também não possuíam documentos”, conta a autora.
Durante quase três anos, ela esteve em pesquisa de campo na Praça Onze, Centro do Rio de Janeiro, acompanhando a movimentação de um ônibus da Justiça Itinerante. Trata-se de um serviço público e gratuito de emissão de certidão de nascimento, que pertence a um projeto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ) e do Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro e à Busca de Certidões (Sepec).
“Toda sexta-feira o ônibus continua no mesmo local. Identifiquei quem são essas pessoas, por que elas não têm documentos e qual relevância elas atribuem aos documentos. Quem não tem certidão de nascimento não pode solicitar o RG e o CPF. Cada vez que você emite um novo documento, pedem outro como comprovação de existência”, explica Fernanda.
Quem são os indocumentados?
Ao longo das 147 páginas do livro, a autora traz reflexões sobre o que representa ser uma pessoa indocumentada no país em pleno século XXI. A participação de histórias reais de brasileiras e brasileiros que não possuem certidão de nascimento enriquece a etnografia, aproximando o leitor da vivência das pessoas indocumentadas, inexistentes perante o Estado.
“As histórias dos personagens estão entrelaçadas. São relatos que constroem uma narrativa, permitindo compreender o problema como um todo. ‘Invisível’ é uma expressão que as próprias pessoas indocumentadas falam. Uma das entrevistadas disse que se sentia como um cachorro, um zero à esquerda, como se não existisse. Ela existe, sim, mas está excluída do mundo dos direitos. Apesar das dificuldades, os indocumentados têm essa exata consciência”, descreve a pesquisadora.
Questionada sobre o perfil da população indocumentada, Fernanda aponta algumas das características em comum: desigualdade social, baixa escolaridade, machismo e racismo estruturais são os principais fatores que levam brasileiros à exclusão do direito à cidadania. “Muitas mulheres esperam que seus companheiros registrem as crianças. Esses genitores não aparecem, então as crianças crescem sem documentos. No livro, conto a história de uma moça cujo pai só registrou os filhos homens. Dizia que mulher não precisaria de registro. A perspectiva de gênero na ausência da documentação é muito forte. Ela não é exclusiva das mulheres, porém as mulheres estão mais sujeitas ao problema”, alerta.
Tema de redação do Enem, presença em Harvard e pauta do Fantástico
“Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de 2021, com direito a destaque de trecho da tese de Fernanda. No início daquele ano, aconteceu o lançamento da publicação. Três anos depois, o assunto segue com a mesma relevância na atualidade, uma vez que quem não tem registro de nascimento não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens e enfrenta dificuldades para acessar benefícios de políticas públicas, como o Bolsa Família.
Para a pesquisadora, embora a primeira via da certidão seja gratuita, o sistema de documentação ainda é excludente, pois está muito distante física ou simbolicamente da população menos favorecida. “Essas pessoas não se sentem acolhidas. A partir dos depoimentos, pude identificar a ‘síndrome do balcão’, contínua recusa do sistema de registro em prestar atendimento. A pessoa vai até o balcão e recebe a resposta de que ´não é aqui não´. Então, elas têm esse direito negado, mesmo tendo a intenção de providenciar o documento”, ressalta.
A exclusão dos indocumentados é um assunto que atravessa gerações e continentes. Em abril deste ano, Fernanda levou o debate “Vozes invisíveis: resgatando a visibilidade civil e o acesso à cidadania para todos” ao Brazil Conference, na Universidade de Harvard e no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Na ocasião, a pesquisadora discorreu sobre a desmistificação do tema dentre os presentes no evento. “Alguns dos participantes me perguntaram sobre quem são as pessoas indocumentadas. Se elas são estrangeiras, parte de um grupo específico ou alguma etnia. Não são imigrantes, e sim pessoas nascidas no Brasil. São cidadãos que, dentro de seu próprio país, não conseguem ter acesso ao documento básico”, frisa.
Recentemente, Fernanda também participou da série “Invisíveis”, produzida pelo programa dominical Fantástico, da Rede Globo. Nos dois últimos episódios, a jornalista acrescentou mais detalhes de sua pesquisa à narrativa dos novos personagens introduzidos pela série homônima de seu livro. “Agradeço à equipe, principalmente ao repórter Eduardo Torres, pelo convite. É bom ver que o tema continua atraindo a atenção de colegas jornalistas, pautando o debate público. Enquanto jornalista, pesquisadora e professora da Uerj, é muito gratificante ver uma pesquisa que nasce de uma reportagem chegar ao tema de redação do Enem e aparecer no Fantástico”, comemora.
Felizmente, o Brasil conseguiu reduzir o sub-registro de crianças nos últimos anos. A taxa que era de 20% em 2002, caiu para 1,3% em 2022. Essa é a diferença entre pessoas nascidas e aquelas que são registradas. “Seria importante, contudo, termos números mais precisos sobre os brasileiros adultos indocumentados. Neste momento, a Uerj vai participar, em parceria com o IBGE, de um levantamento mais detalhado, no que diz respeito aos dados públicos. Esse tema requer nossa atenção urgente, não é um assunto encerrado”, enfatiza.