A pátria acolhedora que mata imigrantes negros: o caso do congolês Moïse Kabagambe

15/02/202216:39

Diretoria de Comunicação da Uerj

Um país que clama para si qualidades de bom anfitrião e acolhedor da diversidade foi palco de mais um ato de xenofobia, racismo e crueldade. No dia 24 de janeiro, o jovem congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi brutalmente espancado até a morte em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Casos como esse levantam o questionamento: o Brasil é realmente uma “mãe gentil” ou o cenário muda quando se trata de estrangeiros e refugiados oriundos de países africanos?  

Moïse veio para o Brasil aos 14 anos, junto com dois irmãos. Seu país de origem, a República Democrática do Congo, sofre há décadas com conflitos armados, nos quais os direitos humanos são violados, estupros são frequentes e até mesmo crianças pegam em armas. Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), os congoleses ocupam o terceiro lugar com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas no Brasil, atrás apenas de venezuelanos e sírios.

Universidades do Rio repudiam o fato

Uma nota de repúdio emitida pelas cátedras Sérgio Vieira de Mello da Uerj, da UFF e da PUC-Rio condena com veemência o crime e defende o acolhimento de refugiados no Brasil. “O refúgio é um direito previsto e um dever humanitário. Não podemos esquecer que as pessoas não são refugiadas, elas se tornam, em função de guerras e adversidades, que as levam a sair de seus países para sobreviver”, diz o texto. 

Em outro trecho, as cátedras afirmam que “tal fato revela de forma transparente o racismo estrutural arraigado na sociedade brasileira, bem como a xenofobia e a aporofobia”, e pedem “celeridade das investigações, punição dos culpados e que se faça justiça”. Até o momento, três homens foram presos. 

Criada com objetivo de defender o direito internacional de refugiados, a Cátedra Sérgio Viera de Mello cumpre papel fundamental na incorporação da temática do refúgio na agenda acadêmica de suas instituições. Desde 2003, ela é implementada pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em cooperação com centros universitários nacionais e com o Conare. 

Racismo estrutural e políticas voltadas à propagação da violência 

Pelo registro de câmeras de segurança, constata-se que não há somente a participação dos agressores, mas também de pessoas assistindo a tudo sem intervir. Situação já comum, em que a barbárie é justificada como resposta a um possível crime cometido pela vítima negra e, automaticamente, presume-se a culpa. Mesmo em condições desumanas, ferido e amarrado em uma escada, não há socorro por parte dos observadores. 

Doriam Borges, professor do Instituto de Ciências Sociais da Uerj, destaca as questões sociais e políticas envolvidas no crime. “Este caso mostra a derrota do projeto civilizador em nosso país. Estamos em um cenário difícil do ponto de vista da economia. A conjuntura política também é complicada neste momento, com uma gestão que estimula uma lógica de eliminar o inimigo através da bala e da paulada. Tudo isso contribui para um clima de intolerância, de impaciência e de mais violência na resolução de conflitos”, explica. 

O assassinato de Moïse reflete o racismo estrutural desde a chegada do jovem ao Brasil. Para além de ser imigrante, ter a pele negra agrega consequências enraizadas nas bases das instituições sociais e políticas do país, trazendo desemprego, fome e condições insalubres de moradia. Esses fatores constroem narrativas em que o agredido é considerado agressor, o que acaba por marginalizar as minorias. 

Sobre a relação histórica entre as diferentes formas de tratamento com estrangeiros africanos e europeus, Borges ressalta que “os primeiros vinham como escravos; já os demais eram recebidos para crescer economicamente” e declara que “a nossa sociedade foi formada com valores racistas, e os desdobramentos disso são tenebrosos”. 

De acordo com a coordenadora da cátedra Sérgio Vieira de Mello da Uerj, Érica Sarmiento, as organizações pró-migrantes estarão vigilantes e lutando, ao lado dos refugiados, pela permanência e conquistas de seus direitos. Ela afirma ainda que, para haver mudanças sociais, “políticas públicas devem ser realizadas, para que se combata o racismo, a xenofobia e qualquer forma de discriminação e violência em nossa sociedade”.

Para Doriam Borges, o cenário é preocupante, na medida em que sinaliza a deterioração da convivência, da lei e do Estado de Direito, evidenciando o viés racista que atravessa as relações e tomadas de decisão de grande parte da sociedade. “O desafio de uma educação antirracista se coloca cada vez mais como central no Brasil”, conclui.